Dias sombrios e um calendário
Observo o rendilhado do tempo
A teclar manhãs de domingo
Imagino a brisa gelada
Soprada nos ramos nus
Da ameixeira resignada
E anseio a postura das árvores
- Diz que não dói, diz que não dói
Filha da puta! Vou-te ensinar a dobrar a espinha...!
Estas e outras pérolas oiço frequentemente quando passo no corredor do 1°
andar. Um destes dias subia as escadas e cruzei-me com a vizinha do 1° frente.
Apesar de a luz não ser famosa deu para reparar que tinha um olho negro e outro
roxo, um traço de boca e um olhar fugidio. Perguntei-lhe pelas crianças e, de
seguida, no mesmo tom de voz quase casual, perguntei-lhe como estava, se estava
bem. Ela disse que sim...
Depois de a cruzar veio-me à lembrança uma estória de camisas mal passadas
a ferro e arrepio-me (detesto passar a ferro).
Este inverno é duro, frio, cinzento e implacável.
É uma estória à moda antiga, o fulano saia de manhã para o trabalho não sem
antes escrever numa lista todas as tarefas que a mulher tinha de fazer durante
o dia. Para além das obrigações ainda tinha uma página de recomendações. Por
exemplo: fazer sopa de feijão com couve e ele especificava que tipo de feijão;
branco, encarnado... E que tipo de couve; lombarda, penca... Fazer as compras
de fruta e legumes na mercearia do Sr. Tal e só comprar carne no talho do Sr.
Fulano. Nunca ir ao café da rua, por motivo algum, se quisesse beber café que
bebesse em casa. Não usar calças, não pintar os olhos e nada de roupas justas e
decotes inconvenientes nas blusas e nos vestidos.
Há pessoas que não precisam de reflectir, há sempre alguém que lhes diz o
que é ou não é inconveniente...
Estás a desviar-me do assunto das camisas.
Pois o fulano quando chegava a casa ia inspeccionar tudo o que tinha indicado
como tarefa diária e todos os dias encontrava defeitos, a sopa estava salgada
(ou insonsa), sanita com ela, as camisas tinham vincos, tanque com elas
(naquele tempo não havia máquinas de lavar roupa como hoje), o móvel da sala
tinha pó ou os bibelots estavam mal limpos toca a limpar à frente dele para o
controle de qualidade...
A roupa ia quase toda novamente para o tanque (que ele mesmo enchia de água
e punha a quantidade de detergente que entendia). Ficava depois a observá-la a
lavar e a ficar com os dedos vermelhos de esfregar na tábua, as peles depois a soltarem-se
quando as mãos secavam. Achas que já estão lavadas? Perguntava ela nos
intervalos das passagens pela tábua de esfregar. Ele dizia sempre que sim, o
problema não era estarem sujas era estarem mal engomadas. O fulano tinha a
teoria que a roupa para ser engomada tinha de estar lavada de fresco senão o
ferro amarelecia-a...
Nas noites em que o jantar ia parar à sanita lá ia ele jantar à tasca do
bairro. A mulher não precisava de jantar, bastava-lhe uma carcaça com queijo e
uma maçã. Nunca se ouviu um queixume da boca daquela mulher.
Como é que souberam do caso, pelas vizinhas? Desta vez nem tanto, ao que
parece ele abria a goela na tasca para se gabar da mulher bem amochada que
tinha em casa. Contava todos os pormenores, até os mais sórdidos, de como a
fazia gostar de sexo, de como ela o satisfazia (gabava-se de não precisar de ir
às putas para esvaziar bem os ditos). Dizia, orgulhoso e cheio de mérito; Em
casa tenho uma gueixa melhor que as chinesas!
O tipo precisa que lhe ofereçam um mapa do mundo com ilustrações!
Hoje, quando regressei à tardinha, encontrei a vizinha do 1° andar a chorar
colada à porta de casa. O marido tinha-a posto fora do apartamento e ficou lá
dentro com os filhos. Já era a hora do bebé mamar. As manchas na blusa dela
começaram a aumentar com a intensidade do choro do filho. Emprestei-lhe o meu
casaco de malha para se tapar, se quisesse. Reparei que o olho roxo começava a
clarear e o olho negro a ficar roxo. Atrás da porta o choro do bebé cada vez
mais aflitivo.
Quando lhe passei o casaco ofereci-lhe ajuda para o que fosse preciso, mas ela
não aceitou; Está tudo bem não se preocupe, é só um arrufo de casados. Sabe
como é... Não, não sei (felizmente!), claro que não tive coragem de lho dizer
nem de a deixar sozinha a ouvir a fome do seu bebé ecoando nas escadas.
Apareceram mais vizinhas e a do r/c esquerdo não foi de modas começou a
tocar insistentemente à campainha. Como o fulano não abria pôs-se aos murros à
porta. O fulano continuou a não abrir e ela gritou mais alto que a fome do bebé;
Ou abre já esta maldita porta ou vem a polícia abri-la!! Parece que a polícia
ainda surte algum efeito, deve ser da ladainha que nos impingiam quando éramos
crianças; "portas-te mal vem o polícia e leva-te"!
Enquanto a ameaça não surtiu o efeito esperado a do r/c, possessa,
voltou-se para a pobre mãe e não se conteve; Está à espera de quê, que a mate?
Que mate os seus filhos? Não tem olhos na cara para ver que este gajo é uma
peste só serve para lhe gastar a juventude e a alegria? Que a usa como se fosse
escrava em carga de negreiros? Abra os olhos, irra!!
A coitada ouviu, baixou o olhar, balbuciou desculpas esfarrapadas; Ele é
assim só quando não dorme. Os filhos fazem muito barulho... O meu marido também
sabe ser muito meigo, quando está calmo mima-nos tanto, traz chocolates para as
crianças e para mim flores, oferece-me sempre rosas brancas... Rosas de um
branco imaculado! Deve ser para contrastar com as "negras" que lhe
planta pelo corpinho todo ao enfiar o mastro a toda a hora e de qualquer
maneira! Rosnou a do r/c.
E depois? Não sei... Como não sabes, ela foi para casa ou não? Sim, isso
sim, mas depois não sei... Amanhã ou outro dia já veremos quantas nódoas negras
ele lhe acrescentou.
Hoje de manhã esbarrei com o vizinho do 3°Dto., aquele que anda com
canadianas, parece que caiu nas escadas e partiu o pé. Coitado, estava com um
ar tão desmazelado, roupa amarrotada, cabelo sujo e um cheiro... Cheirava a
tabaco suado e a fritos, a mofo de velho. Ele ainda não é velho, deve ter para
ai 50.
Pensava que era casado. Já foi, a mulher pirou-se com o médico de família.
?
Pois, parece que o médico foi colocado num hospital no centro do País e ela
nem hesitou e foi com ele, ou atrás dele, as versões variam conforme as
vizinhas... Então está explicado o ar desmazelado e o olhar de cão acossado que
ele tem. Apesar do mau cheiro ofereci-lhe ajuda. Olhou-me agradecido mas que
não, não era necessário preocupar-me que estava a dar conta do recado e já
tinha tudo organizado para lhe trazerem as compras e os remédios.
O homem é mais pequeno que o seu desgosto.
Deixou o trabalho, os amigos e todos os afazeres e actividades. Passa os
dias enfiado no apartamento a chorar e a ouvir fados tristes. A vizinha do piso
dele é que conta, acrescentado sempre; Idiota! Tão maltratado pela mulher e em
vez de respirar de alívio chora por ela! Parece que a tipa gritava com ele
desalmadamente e lhe chamava todos os nomes do vocabulário ordinário.
Humilhava-o mesmo à frente de outras pessoas e ele, sempre cabisbaixo e pronto
a perdoar todos os excessos e a amá-la mais, cada vez mais.
Já era da praxe, depois de uma discussão (nunca provocada nem alimentada
por ele), lá vinham os miminhos; rosas vermelhas ou tulipas negras, quando não
lenços de seda coloridos, perfumes...Por alguns minutos a fulana arrecadava as
unhas e a língua e falava-lhe calmamente. Era o tempo de cheirar as flores, de
as colocar numa jarra com água, de abrir a caixa do perfume e de vaporizar umas
gotas nos pulsos, atrás da orelha. Momentos breves, pausas que duravam pouco e
lá recomeçava a gritaria, as ameaças, os desaforos. A fulana ao que parece
tinha uma espécie de acusação fetiche que lhe saia sem tempero em qualquer sítio;
Nem para foder serves!
Essa é forte.
Pois é...
Paula Sá Carvalho, Março de 2016