terça-feira, 23 de outubro de 2012

Este Senhor Poeta dá voz ao desassossego como ninguém. Para todos os que se procuram - sabendo que o
encontro é quantas vezes uma miragem! - publico este poema
 
Entre o Sono e Sonho
 
Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Todos procuramos a luz, uns às cegas outros de olhos bem abertos.
A uns e outros dedico este poema


OS DEUSES

A pedra fria
Mágica
Erguida por séculos
E séculos
De memória sepulcral
De imagens
E de cores
Que gritam
Ao sol para entrar
Nos passos do chão
Quebraram-se corações
Uns sinceros
Outros não
Mas todos aflitos
Beberam da mesma água
Benzeram a mesma
Aflição
Alumiaram as noites
Dos habitantes da bruma
Salvaguardando-se da cegueira
Colhendo pirilampos
No além-amar
Desses corações
Saíram ais
Lágrimas e sangue
Lágrimas de alguns
De outros o verbo
Todos eram filhos comuns

Paula Sá Carvalho, 2012

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Hoje é o aniversário da minha filha. Quando ela nasceu, de alguma forma nasci com ela; pois todos os meus sentidos passaram a não me pertencer como até aí.
Com os novos medos vieram também novas tonalidades de sorrisos, outro abraçar, outro sentir...
À minha filha Mónica, dedico este poema


A HERANÇA

Ela levantou as mãos
Ninguém percebeu para quê

Nem ela

Perdeu o equilíbrio

Caiu no sonho

E pintou

Nas paredes os rostos

De ninguém

Perdido na almofada

Encontrou

O bom humor

Sorriu

E a manhã

Cresceu

E ela cresceu com ela





Paula Sá Carvalho, 2012


quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A vida é feita de momentos às vezes tão fugazes mas que não deixam por isso de ser importantes. A esses momentos - que se colam a nós, nos vestem, nos defendem do frio e do calor extremos, dedico este poema
 
INSTANTES

Recorda o meu sorriso
E dá-me a tua mão
Ajuda-me a passar este riacho
A saltar as pedras
Uma a uma
Risonha
A brincadeira de sermos nós
É uma aventura

Recorda o meu sorriso
Mas não uma fotografia
Não tem som
Não tem gargalhar
Nem riso
É só uma testemunha
Isto não é um tribunal

Paula Sá Carvalho, 2012