quarta-feira, 19 de agosto de 2015


O velho que gostava de pernas jovens

 

Já mal consigo andar, apesar disso esforço-me por sair de casa todos os dias. Faça o tempo que fizer, e aqui neste país chove e neva que se farta, nunca fico um dia sem sair de casa. Visitas não tenho, a não ser um telefonema desencontrado nos meses, feito à vez por cada um dos meus 2 filhos, sempre apressados em acabar a conversa mas não se atrevendo a tomar a iniciativa...

 

A mulher já faleceu há 7 anos, os amigos também já partiram todos, às vezes com tão pouco tempo de intervalo que mal enxuguei as lágrimas por um já derramo novas lágrimas por outro. Se virmos o lado positivo da questão pude poupar nos lutos individualizados; nos fatos escuros e nas gravatas. Só a dor de os perder não teve nenhum desconto.

 

Há muito tempo que não tenho paciência para ler, nem revistas nem jornais e muito menos livros! Romances e estórias da carochinha já não me preenchem os tempos mortos, assim que começo a ler desconcentro-me das palavras escritas e revivo episódios fortuitos da minha existência que passou tão célere! Mesmo se algumas dores me fizeram prender a quotidianos amargos e tão longos que tiveram seguramente mais de 24 horas.

 

Para me entreter já só me resta sair à rua; ver gente, carros, bichos e árvores a despirem-se e a vestirem-se numa renovação sem pudor. Para não me atrapalhar com vazios por preencher arranjo sempre o que fazer nas minhas saídas diárias; uma vez falta-me o leite, outro dia falta-me o pão e quase sempre faltam-me os cigarros. Sou por isso um homem rotineiramente atarefado.

 

Os meus vizinhos são todos mais novos do que eu, quase todos barulhentos, distraídos e não raras vezes indiferentes. Se porventura apodrecer no meu apartamento, como acontece a tantos e tantas por esse mundo fora, só vão dar pelo mau cheiro depois de esgotarem os perfumes e todas as velinhas de aromas que tiverem em stock lá por casa.

 

Dou-lhes sempre os bons dias (só saio de manhã), a maior parte das vezes a resposta é a mesma que aquela que receberia se falasse para uma parede. Apesar disso não desisto, afinal onde está a nossa humanidade, na eventual reacção do outro ou na nossa consciência?

 

Quando saio à rua distraio-me muito, até me esqueço das artroses, das varizes e das hérnias discais. Sair implica ver algo para além de nós e eu que sempre fui curioso entretenho-me prazerosamente a observar as pessoas, o movimento das ruas, das lojas, os animais que passeiam os donos e também aqueles que se passeiam sozinhos.

 

De tudo, o que mais gosto de apreciar nas pessoas são as pernas pois tenho uma queda imortal para apreciar pernas. Jovens, claro. Porquê jovens? Porque são pernas expeditas que seguram os passos na direcção desejada, são pernas que ainda têm muito para andar, tal como eu quando era da mesma idade. Muitas corridas fiz, muitas marchas e até maratonas cheguei a concluir. As minhas pernas quando jovens resumiam o cansaço de forma muito inovadora; umas massagens, uns banhos de mar a espumar na pele e saía renovado e pronto para outra. Hoje em dia já não tenho pernas para quase nada a não ser para estes passeiozitos de rua. Mesmo ao café da esquina deixei de ir desde que o último dos meus amigos faleceu, que interesse tem ir para um sítio beber sozinho, engolindo tristonho recordações felizes de tantos anos de convívio juntos?

 

Mesmo sentindo saudades dos que partiram, e dos que ficaram e se esqueceram de mim, mesmo enxugando névoas do olhar mais frequentemente do que desejaria, mesmo assim continuo a gostar muito de viver. A aguardar o verde tenro das primeiras folhas das árvores e dos arbustos com expectativa de menino, a esperar pelas primeiras neves com um leve frémito infantil como se sonhasse todas as noites em fazer um novo boneco de neve, a escutar deliciado o chilreio do estio no canto dos passarinhos e nos risos das crianças quando brincam.

 

Um dia, numa manhã soalheira que entrou descarada pela frincha da persiana mal fechada e me acordou de mansinho, florindo de verão o meu rosto, quis levantar-me e não consegui. As minhas pernas até aí relutantes em obedecer tinham-se rebelado de vez. Fiquei acamado e dependente. A partir desse dia passei a receber as visitas diárias e cronometradas de assistentes a idosos. E passaram a ser elas a lavar-me, a vestir-me e a dar-me o almoço e o jantar.

 

Eram muito sérias mesmo se solícitas e sempre pontuais pois nem 2 minutos se atrasavam do horário estipulado! Enfim, poderiam ser quase perfeitas, não fora as pernas; gordas, cheias de rendilhados de azul anoitecido e de pele tão rugosa que nem era preciso tocá-las para o sentir. Como se isso não bastasse, a cada passo que davam pareciam soltar queixumes de infortúnio das condições atmosféricas em redor; humidades ou calores circundantes, quer fosse verão ou inverno. Isso, confesso, ainda me custava mais do que a mudança de fraldas e dos seus narizes enviesados quando me lavavam o rabo.

 

Mas como se costuma dizer, nem o bem é eterno nem o mal dura para sempre e um belo dia a minha sorte mudou com a substituição de uma das minhas tratadoras. A nova assistente mostrou estar à altura das minhas expectativas e assim os meus dias passaram a ser mais animados. Fui também tomado de uma renovada energia que me transformou até num velho um bocadinho casmurro (pois passei a solicitar-lhe com uma frequência inabitual e logo no primeiro dia), mais água, mais fruta, o guardanapo caiu, vá buscar outro, por favor. Enfim, todos os motivos se tornaram bons para a fazer movimentar-se do quarto para a cozinha e da cozinha para o quarto. A jovem, que como todos os da sua idade era distraída, nunca percebeu as minhas manigâncias. A outra sim, piscava-me o olho com benevolência e não dizia nada. Os meus dias tornaram-se então mais aceitáveis na expectativa destas visitas diárias pois podia observar a meu belo prazer, à custa de muitos pedidos de copos de água e guardanapos limpos, umas belas pernas de gazela, expeditas e leves a percorrerem os poucos metros que separavam a minha cabeceira da porta do quarto.

 

Velho tonto! Se pensas que venho mais algum dia de saias estás muito enganado! A partir de hoje não vou dar-te mais nenhuma hipótese de apreciar as minhas pernas!

  

 

Paula Sá Carvalho, Agosto de 2015