quarta-feira, 29 de julho de 2015


Saudade...

Sinto saudade do tempo em que tinha tempo, demasiado tempo. Por vezes era tanto que me aborrecia de morte aquele espaço inocupado. Pensava eu na altura que a solução para preencher tanto vazio seria crescer, pois ser adulta implicava necessariamente estar sempre atarefada. Nesse dantes, um dia era sempre muito maior do que as 24 horas que esse período é suposto ter. Hoje, um dia é sempre pequeno demais para eu fazer tudo o que quero fazer. Acrescentar-lhe-ia facilmente mais meia dúzia de horas!

Será que se eu listar a saudade ela me apazigua?

Sinto saudade de ser criança e da minha bicicleta verde, os joelhos esfolados por cair dela ou por escorregar nas pedras da calçada eu dispensava.

Sinto saudade das prendas de Natal e de acreditar que o menino Jesus as deixava no sapatinho durante a noite porque eu era boazinha e estava por isso a ser recompensada.

Sinto saudade dos jogos da infância e dos risos cristalinos que soltávamos nas escondidas, hoje passo o tempo escondida e não me dá nenhuma vontade de rir.

Sinto saudade da bata branca que no caminho de regresso da escola tirava e guardava na pasta para poder mostrar os vestidos, como gostava de ainda gostar de vestidos.

Sinto saudade de ser neta pois quando o era tudo me parecia imenso e a saudade não fazia parte do meu vocabulário, hoje alarguei em muito o meu vocabulário e também a mágoa de chamar as coisas pelos nomes.

Sinto saudade das colecções dos 5 e dos 7 que lia na biblioteca da escola durante os furos do horário escolar e das aventuras magníficas vividas em segunda mão e sem perigos à espreita.

Sinto saudade das pastilhas elásticas pirata e dos enormes balões que às vezes deixava rebentar no nariz, entretanto continuo a mascar pastilhas elásticas mas discretamente pois parece mal.

Sinto saudade do sofá amarelo junto à janela da sala de estar e dos livros que ali devorei horas a fio, hoje a biblioteca é maior, o sofá mais confortável, mas as horas perderam o fio ou eu perdi a meada.

Sinto saudade dos primeiros beijos escondidos que troquei no canto mais escuro do liceu, o sabor desses beijos ainda marca uma certa lembrança...

Sinto saudade das festas de garagem e dos slows que tocavam e nós querendo fazer de conta que a dança era o abraço da música e o resto simples coreografia.

Sinto saudade dos amigos e da mesa de café onde passávamos tardes sempre animadas pela leitura em grupo do jornal se7e e pelas discussões acaloradas de guardiões de arte da humanidade, há muito que parámos as nossas reuniões e isso tem desajudado o mundo como se vê pelo caminho que ele leva.

Sinto saudade das minhas amigas artistas; a que escrevia poemas nas planícies do Alentejo e chorava copiosamente o amor sempre imperfeito e a outra que inventava novos violetas para pintar os pores-do-sol na cidade, é por isso que ainda hoje escrevo poemas com palavras coloridas.

Sinto saudade das questiúnculas afamadas entre os comunas e os fachos do liceu a que eu assistia sentada no banco do costume acreditando que as diferenças são para respeitar e que entre os que davam e levavam algum havia de escapar.

Sinto saudade da música e da cor da liberdade daquelas primaveras inacabadas que foram a nossa verdadeira escola tudo o que veio depois foi só folclore e o "rei" continua a ir nu.

Sinto saudade dos filmes a que assisti sem ver, muito bem acompanhada na última fila da sala de cinema, alguns fui ver 2 ou 3 vezes para melhor compreender a estória...

Sinto saudade de mim, do que ainda não fui, do que ainda não tive. Já alguém o disse antes; saudade não é só sentir a falta do que se teve e deixou de ter, saudade pode sentir-se também daquilo que ainda não aconteceu, mas que cresce em nós como um desejo que precisamos realizar.

Mesmo em momentos de grande tranquilidade, como quando estou na praia à beira mar, disposta a apaziguar-me com o passado, sou frequentemente impedida de o fazer por uma melancolia mansa que me agua o olhar e se solta rebelde por todos os cantinhos do meu ser numa vozinha estridente; Estou aqui! Não me ignores... E lá fico eu mais uma vez perdida naqueles meandros do que tive e não tive, fui e não fui, desejei e não desejei...

Nesses momentos não há livro nem há nada capaz de colmatar tanta mágoa. A não ser talvez aquela outra voz que se faz ouvir percorrendo o areal de lés a lés incansavelmente; Olhá bolinha! Sacudo então a nostalgia do corpo e do espírito, vou ao saco buscar o porta-moedas e faço um sinal bem visível à vendedeira. Sou pessoa para dar muito valor a certas transacções comerciais…

Mas a saudade volta a insistir na sua presença (já alguém disse que é doença que não passa), mesmo enquanto me delicio a mastigar o pitéu. Vem de mansinho e quando dou por ela já tomou conta de mim uma melancolia do tempo em que as Bolas de Berlim eram escorreitas de colesterol e celulite...

Paula Sá Carvalho, Julho de 2015