Saudade...
Sinto
saudade do tempo em que tinha tempo, demasiado tempo. Por vezes era tanto que
me aborrecia de morte aquele espaço inocupado. Pensava eu na altura que a
solução para preencher tanto vazio seria crescer, pois ser adulta implicava necessariamente
estar sempre atarefada. Nesse dantes, um dia era sempre muito maior do que as
24 horas que esse período é suposto ter. Hoje, um dia é sempre pequeno demais
para eu fazer tudo o que quero fazer. Acrescentar-lhe-ia facilmente mais meia
dúzia de horas!
Será que
se eu listar a saudade ela me apazigua?
Sinto
saudade de ser criança e da minha bicicleta verde, os joelhos esfolados por
cair dela ou por escorregar nas pedras da calçada eu dispensava.
Sinto
saudade das prendas de Natal e de acreditar que o menino Jesus as deixava no
sapatinho durante a noite porque eu era boazinha e estava por isso a ser
recompensada.
Sinto
saudade dos jogos da infância e dos risos cristalinos que soltávamos nas
escondidas, hoje passo o tempo escondida e não me dá nenhuma vontade de rir.
Sinto
saudade da bata branca que no caminho de regresso da escola tirava e guardava
na pasta para poder mostrar os vestidos, como gostava de ainda gostar de
vestidos.
Sinto
saudade de ser neta pois quando o era tudo me parecia imenso e a saudade não
fazia parte do meu vocabulário, hoje alarguei em muito o meu vocabulário e
também a mágoa de chamar as coisas pelos nomes.
Sinto
saudade das colecções dos 5 e dos 7 que lia na biblioteca da escola durante os
furos do horário escolar e das aventuras magníficas vividas em segunda mão e
sem perigos à espreita.
Sinto
saudade das pastilhas elásticas pirata e dos enormes balões que às vezes
deixava rebentar no nariz, entretanto continuo a mascar pastilhas elásticas mas
discretamente pois parece mal.
Sinto
saudade do sofá amarelo junto à janela da sala de estar e dos livros que ali
devorei horas a fio, hoje a biblioteca é maior, o sofá mais confortável, mas as
horas perderam o fio ou eu perdi a meada.
Sinto
saudade dos primeiros beijos escondidos que troquei no canto mais escuro do
liceu, o sabor desses beijos ainda marca uma certa lembrança...
Sinto
saudade das festas de garagem e dos slows que tocavam e nós querendo fazer de
conta que a dança era o abraço da música e o resto simples coreografia.
Sinto
saudade dos amigos e da mesa de café onde passávamos tardes sempre animadas
pela leitura em grupo do jornal se7e e pelas discussões acaloradas de guardiões
de arte da humanidade, há muito que parámos as nossas reuniões e isso tem
desajudado o mundo como se vê pelo caminho que ele leva.
Sinto
saudade das minhas amigas artistas; a que escrevia poemas nas planícies do
Alentejo e chorava copiosamente o amor sempre imperfeito e a outra que
inventava novos violetas para pintar os pores-do-sol na cidade, é por isso que
ainda hoje escrevo poemas com palavras coloridas.
Sinto
saudade das questiúnculas afamadas entre os comunas e os fachos do liceu a que
eu assistia sentada no banco do costume acreditando que as diferenças são para
respeitar e que entre os que davam e levavam algum havia de escapar.
Sinto
saudade da música e da cor da liberdade daquelas primaveras inacabadas que
foram a nossa verdadeira escola tudo o que veio depois foi só folclore e o
"rei" continua a ir nu.
Sinto
saudade dos filmes a que assisti sem ver, muito bem acompanhada na última fila
da sala de cinema, alguns fui ver 2 ou 3 vezes para melhor compreender a
estória...
Sinto
saudade de mim, do que ainda não fui, do que ainda não tive. Já alguém o disse
antes; saudade não é só sentir a falta do que se teve e deixou de ter, saudade
pode sentir-se também daquilo que ainda não aconteceu, mas que cresce em nós
como um desejo que precisamos realizar.
Mesmo em
momentos de grande tranquilidade, como quando estou na praia à beira mar,
disposta a apaziguar-me com o passado, sou frequentemente impedida de o fazer
por uma melancolia mansa que me agua o olhar e se solta rebelde por todos os
cantinhos do meu ser numa vozinha estridente; Estou aqui! Não me ignores... E
lá fico eu mais uma vez perdida naqueles meandros do que tive e não tive, fui e
não fui, desejei e não desejei...
Nesses
momentos não há livro nem há nada capaz de colmatar tanta mágoa. A não ser
talvez aquela outra voz que se faz ouvir percorrendo o areal de lés a lés
incansavelmente; Olhá bolinha! Sacudo então a nostalgia do corpo e do espírito,
vou ao saco buscar o porta-moedas e faço um sinal bem visível à vendedeira. Sou
pessoa para dar muito valor a certas transacções comerciais…
Mas a
saudade volta a insistir na sua presença (já alguém disse que é doença que não
passa), mesmo enquanto me delicio a mastigar o pitéu. Vem de mansinho e quando
dou por ela já tomou conta de mim uma melancolia do tempo em que as Bolas de
Berlim eram escorreitas de colesterol e celulite...
Paula Sá Carvalho, Julho de 2015