quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Hoje, quando olhei para mim, lembrei-me do belíssimo poema de Cecília Meireles e voltei a sentir aquele desconforto indefinido, aquela quietude involuntária, aquele tempo que estraga e não repara.
Vamos então tirar juntos este retrato...
 
RETRATO

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- em que espelho ficou perdida
a minha face?


Cecília Meireles (1901-1964)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

A autenticidade, a humildade... palavras tão fluidas nos dias de hoje (e de sempre!)
que o diga o Poeta/Filósofo que hoje me atrevi a "convidar".
 
 
Queria que os Portugueses
 
Queria que os portugueses
tivessem senso de humor
e não vissem como génio
todo aquele que é doutor

sobretudo se é o próprio
que se afirma como tal
só porque sabendo ler
o que lê entende mal

todos os que são formados
deviam ter que fazer
exame de analfabeto
para provar que sem ler

teriam sido capazes
de constituir cultura
por tudo que a vida ensina
e mais do que livro dura

e tem certeza de sol
mesmo que a noite se instale
visto que ser-se o que se é
muito mais que saber vale

até para aproveitar-se
das dúvidas da razão
que a si própria se devia
olhar pura opinião

que hoje é uma manhã outra
e talvez depois terceira
sendo que o mundo sucede
sempre de nova maneira

alfabetizar cuidado
não me ponham tudo em culto
dos que não citar francês
consideram puro insulto

se a nação analfabeta
derrubou filosofia
e no jeito aristotélico
o que certo parecia

deixem-na ser o que seja
em todo o tempo futuro
talvez encontre sozinha
o mais além que procuro.


Agostinho da Silva, in 'Poemas'

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Hoje por estas paragens está um dia luminoso, estival. Pretexto para qualquer emoção que nos tire da tirana letargia do quotidiano. Que melhor que a poesia para nos deleitar uns momentos?


O DIA

É líquido o som
E o espaço deste dia
Tem cor translúcida
Sabe a melodia


Paula Sá Carvalho, 2012

terça-feira, 14 de agosto de 2012

E vem-me memória o verso do Poeta da Bossa Nova "Na vida há tanto desencontro" para introduzir o seu contrário. Ou será o desejo do seu contrário? Anyway, já que estamos aqui podemos partilhar juntos estes breves momentos poéticos.


O ENCONTRO

Prefiro sentir o aroma da flor
A descrevê-la na cor
Ou no suave odor

Prefiro ouvir as melodias
A pautar os dias
Em sinestesias

Prefiro ler um olhar
Na liquidez do momento
Do que sonhar
Só em pensamento

E nada pode impedir
Este coração de bater
Pausado ou o rir
Descansado de ser



Paula Sá Carvalho, 2012

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O convidado de honra há muito que passou a hóspede permanente. Hoje decidi postar este poema (publicado em 2007) e partilhá-lo neste espaço.

De todos os sonhos
O sonho do sonho
É o mais envolvente



Paula Sá Carvalho in Deixem-me ouvir o silêncio, 2007

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Hoje apetece-me acolher o sonho como convidado de honra aqui neste pequeno espaço e partilhar um dos mais belos poemas da língua portuguesa. Não fui eu a escrevê-lo mas se tivesse tido talento para o escrever, ele seria exactamente assim
 
 
Pedra Filosofal
 
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão, in 'Movimento Perpétuo'

quinta-feira, 2 de agosto de 2012


Há uns tempos, semanas (ou meses?) escrevi um soneto para tentar exprimir o peso do silêncio de voz (foi este o título que na altura escolhi).

Hoje decidi postá-lo para iniciar o meu blogue e poder assim partilhar momentos com conhecidos e eventualmente desconhecidos

Naquele dia sentia-me assim

SILÊNCIO DE VOZ

Tenho voz mas não sou ouvida
Terei de mudar o timbre a amplitude
Gritar desespero de morte ou de vida
Argumentar ordenar esperar solicitude


Ou poderei partir em silêncio de voz
Com o brilho do olhar das florestas
Dos rios que correm para a foz
Dos atletas que cortam as metas

Que voz é esta que se perdeu nas manhãs
À espera que o sol brilhasse de esplendor
Tudo tão naturalmente como coisas vãs

Assim como o sorriso do amor
Ou o almofadar de um ombro amigo
- Por que estou tão só se estou comigo?



Paula Sá Carvalho - 2012