terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A nossa identidade pode ser um crescente e constante desafio. Para aqueles que cruzam essas estradas e caminhos, e que mesmo cansados nunca desistem de continuar, publico este poema.


IDENTIDADE

Por vezes escrevem-se palavras
E recordamos momentos
Como se fossem presentes
E os anos que nos ultrapassaram
Esperam-nos numa esquina
De outra rua que não a nossa

Por vezes ao escrevermos palavras
Sonhamos que já nos esquecemos
Daquele espaço tão vasto
Que é o sermos nós não sermos uma imagem
E o medo espreita por detrás do nosso ombro
A nossa sombra avoluma-se e deixa de ser nossa
Nesse instante
Em todos os instantes que se seguem
Ao instante
Ficamos à espera
Sem sabermos de quê
Esperamos
Sentimos o frémito do desconhecido
Aquele espaço
Tão alargado dos sentidos

Paula Sá Carvalho, 2012

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Já não te posso telefonar
 
A neve caiu em abundância
E cobriu tudo de um branco diáfano
Cor tão pura e tão luminosa
Tudo ficou perfeito em meu redor
 
E entretanto veio o dia do teu aniversário
E eu que já não te posso telefonar
Fiquei com a garganta dorida de silêncio
À espera que a noite chegasse e me adormecesse
 
A noite deu-me um sono sem sonhos
E o meu corpo deu voltas e mais voltas
Como se se quisesse enrolar
 
A pequena angústia que comigo se deitou
Afagou-me com tanto empenho
Que me acordou antes de me despertar
 

Ao meu Pai, com saudade
Paula Sá Carvalho, 10 de Dezembro de 2012

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Por vezes sinto-me assim...

PROMENADE

Os malabarismos do corpo
Em nada são comparáveis
Aos malabarismos do espírito
É por isso que estática
Me passeio pelo dia-a-dia
Do meu calendário existencial

Paula Sá Carvalho, 2012

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Escrevi este poema em Junho de 2010 após a morte de Saramago. Foi a minha muito pequenina homenagem a um autor que me ajudou a crescer e a tornar-me melhor. Hoje decidi publicá-lo neste espaço e partilhar o valor destas palavras

A homenagem possível

O poema possível é aquele
Que deixa crescer a palavra
Com sangue riso e lágrima

O poema possível é aquele
Que ritma ao som da voz comum
Aquele que não é só mais um

Como posso homenagear a voz
Que deu tanto corpo aos invisíveis
Que criou as personagens possíveis
Eu tu aquele aquela somos nós

Que cimentámos todos os monumentos
Que erguemos todas as barreiras
Com a tua pena fomos por momentos
Reis e rainhas de todas as fileiras

Paula Sá Carvalho, 2012

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

De há uns dias para cá sinto-me assim. Sei que não estou só... Aos que me acompanham nesta estrada, dedico este poema.


GEO INDECISA

Tento recuperar-me
Do irrecuperável
Sentir é uma estrada sem destino
Com muitos cruzamentos
Perigosos

Paula Sá Carvalho, 2012

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Este Senhor Poeta dá voz ao desassossego como ninguém. Para todos os que se procuram - sabendo que o
encontro é quantas vezes uma miragem! - publico este poema
 
Entre o Sono e Sonho
 
Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Todos procuramos a luz, uns às cegas outros de olhos bem abertos.
A uns e outros dedico este poema


OS DEUSES

A pedra fria
Mágica
Erguida por séculos
E séculos
De memória sepulcral
De imagens
E de cores
Que gritam
Ao sol para entrar
Nos passos do chão
Quebraram-se corações
Uns sinceros
Outros não
Mas todos aflitos
Beberam da mesma água
Benzeram a mesma
Aflição
Alumiaram as noites
Dos habitantes da bruma
Salvaguardando-se da cegueira
Colhendo pirilampos
No além-amar
Desses corações
Saíram ais
Lágrimas e sangue
Lágrimas de alguns
De outros o verbo
Todos eram filhos comuns

Paula Sá Carvalho, 2012

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Hoje é o aniversário da minha filha. Quando ela nasceu, de alguma forma nasci com ela; pois todos os meus sentidos passaram a não me pertencer como até aí.
Com os novos medos vieram também novas tonalidades de sorrisos, outro abraçar, outro sentir...
À minha filha Mónica, dedico este poema


A HERANÇA

Ela levantou as mãos
Ninguém percebeu para quê

Nem ela

Perdeu o equilíbrio

Caiu no sonho

E pintou

Nas paredes os rostos

De ninguém

Perdido na almofada

Encontrou

O bom humor

Sorriu

E a manhã

Cresceu

E ela cresceu com ela





Paula Sá Carvalho, 2012


quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A vida é feita de momentos às vezes tão fugazes mas que não deixam por isso de ser importantes. A esses momentos - que se colam a nós, nos vestem, nos defendem do frio e do calor extremos, dedico este poema
 
INSTANTES

Recorda o meu sorriso
E dá-me a tua mão
Ajuda-me a passar este riacho
A saltar as pedras
Uma a uma
Risonha
A brincadeira de sermos nós
É uma aventura

Recorda o meu sorriso
Mas não uma fotografia
Não tem som
Não tem gargalhar
Nem riso
É só uma testemunha
Isto não é um tribunal

Paula Sá Carvalho, 2012

terça-feira, 25 de setembro de 2012


Hoje tive um dia difícil e sempre que isso acontece abraço a poesia (que nunca me deixou ficar mal - bem pelo contrário - ilumina sempre o meu caminho)
Para todos os amantes de poesia faça-se luz!!

POESIA

Só a poesia tem o poder
De me desfazer as lágrimas
Em caudal de silêncio
Em abraços de ternura

Só a poesia provoca encontros
Nas esquinas do esquecimento
E transforma os odores
Em perfumes de magnólia

Só a poesia amante das palavras
Ilumina com cor o meu sorriso
E na alvura de um dia menina
Me alimenta os sonhos de mulher

Se só a poesia é amante dos sentidos
Por que razão adormeci esta noite
Sem sentir o fulgor dos teus passos
Sem me aperceber da paixão dos teus beijos

Por que razão procuro na luz
O que só se encontra na penumbra
Ou nunca se encontra
Por que razão não esqueço a razão

Não me esqueço a mim
 
Paula Sá Carvalho, 2012

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Hoje apetece-me partilhar este poema dedicado às mulheres que apesar do desencanto nunca desistem de acreditar na equidade. E porque falo de equidade, o convite é, evidentemente, extensivo aos homens que "com um brilhozinho nos olhos" lá nos vão enxugando uma lágrima ou outra

FEMINA

Choro a minha condição de ser mulher
Choro porque sei que nada mudarei
Sem muita luta
Choro a minha condição de ser mulher
Não contente com este descontentamento
Este descontentamento inútil
Não é só o perder-se a capacidade
De sonhar
É tão mais os sonhos já não serem
Verdadeiramente importantes
Imprescindíveis


Paula Sá Carvalho, 2012

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Hoje, quando olhei para mim, lembrei-me do belíssimo poema de Cecília Meireles e voltei a sentir aquele desconforto indefinido, aquela quietude involuntária, aquele tempo que estraga e não repara.
Vamos então tirar juntos este retrato...
 
RETRATO

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- em que espelho ficou perdida
a minha face?


Cecília Meireles (1901-1964)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

A autenticidade, a humildade... palavras tão fluidas nos dias de hoje (e de sempre!)
que o diga o Poeta/Filósofo que hoje me atrevi a "convidar".
 
 
Queria que os Portugueses
 
Queria que os portugueses
tivessem senso de humor
e não vissem como génio
todo aquele que é doutor

sobretudo se é o próprio
que se afirma como tal
só porque sabendo ler
o que lê entende mal

todos os que são formados
deviam ter que fazer
exame de analfabeto
para provar que sem ler

teriam sido capazes
de constituir cultura
por tudo que a vida ensina
e mais do que livro dura

e tem certeza de sol
mesmo que a noite se instale
visto que ser-se o que se é
muito mais que saber vale

até para aproveitar-se
das dúvidas da razão
que a si própria se devia
olhar pura opinião

que hoje é uma manhã outra
e talvez depois terceira
sendo que o mundo sucede
sempre de nova maneira

alfabetizar cuidado
não me ponham tudo em culto
dos que não citar francês
consideram puro insulto

se a nação analfabeta
derrubou filosofia
e no jeito aristotélico
o que certo parecia

deixem-na ser o que seja
em todo o tempo futuro
talvez encontre sozinha
o mais além que procuro.


Agostinho da Silva, in 'Poemas'

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Hoje por estas paragens está um dia luminoso, estival. Pretexto para qualquer emoção que nos tire da tirana letargia do quotidiano. Que melhor que a poesia para nos deleitar uns momentos?


O DIA

É líquido o som
E o espaço deste dia
Tem cor translúcida
Sabe a melodia


Paula Sá Carvalho, 2012

terça-feira, 14 de agosto de 2012

E vem-me memória o verso do Poeta da Bossa Nova "Na vida há tanto desencontro" para introduzir o seu contrário. Ou será o desejo do seu contrário? Anyway, já que estamos aqui podemos partilhar juntos estes breves momentos poéticos.


O ENCONTRO

Prefiro sentir o aroma da flor
A descrevê-la na cor
Ou no suave odor

Prefiro ouvir as melodias
A pautar os dias
Em sinestesias

Prefiro ler um olhar
Na liquidez do momento
Do que sonhar
Só em pensamento

E nada pode impedir
Este coração de bater
Pausado ou o rir
Descansado de ser



Paula Sá Carvalho, 2012

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O convidado de honra há muito que passou a hóspede permanente. Hoje decidi postar este poema (publicado em 2007) e partilhá-lo neste espaço.

De todos os sonhos
O sonho do sonho
É o mais envolvente



Paula Sá Carvalho in Deixem-me ouvir o silêncio, 2007

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Hoje apetece-me acolher o sonho como convidado de honra aqui neste pequeno espaço e partilhar um dos mais belos poemas da língua portuguesa. Não fui eu a escrevê-lo mas se tivesse tido talento para o escrever, ele seria exactamente assim
 
 
Pedra Filosofal
 
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão, in 'Movimento Perpétuo'