sexta-feira, 19 de junho de 2015


Dá-me mais sopa, Mãe

Estava eu a acabar de lavar a loiça do jantar quando o meu filho me veio dar um beijo; Vou beber um copo com amigos mas não venho tarde. Ainda lhe disse; Já estás com o pijama e tudo, filho... Porque não ficas em casa?

Era o miúdo mais traquina da praceta. Adorava fazer malandrices às miúdas e depois, para se fazer perdoar, enviava-lhes aquele sorriso  iluminado de azul como se enviasse uma carta de amor. As birras passavam depressa tanto às "ofendidas" como a ele. Até eu que pensava ser uma das suas vítimas "preferidas", pelas investidas tão recorrentes em contrariar-me (não raramente acabando por me levar aos gritos e às lagrimas), lhe perdoava rapidamente... Na idade de brincar, o tempo não é desperdiçado por questões intricadas em egos ainda mal finalizados.

A cozinha ainda não estava toda arrumada quando vieram dar-me a notícia, soube então que já não tinha filho. Não acreditei no que me diziam; Já não tenho o meu filho? Isso é impossível! Ainda sinto o calor dos seus lábios quando há pouco me deu um beijo! Ainda o oiço a despedir-se, alegre e descontraído antes de fechar a porta da rua; Até logo, Mãe.

Vou ficar na obscuridade até me cansar. Não me venham com falinhas mansas e dizer que tudo o tempo apazigua. Não quero, pura e simplesmente não quero, pensar no tempo do devir. Para mim o tempo está parado, adormecido precocemente na inércia das horas sem calendário, sem estações do ano.

Não consigo parar isto! De onde é que me apareceu esta recta, a estrada não tinha esta recta!

O que eu corri para me refugiar nuns braços protectores. Chorei tanto, tanto, que só depois de me cansar a verter lágrimas pude aliviar um pouco a pressão no meu peito. A recordação da transparência dos seus olhos ficou gravada em mim até hoje. Durante largos meses via o meu amigo passear-se nos telheiros do liceu, na sala de convívio, por vezes na sala de aulas. Sempre vestido com os seus jeans preferidos e já coçados de tanto uso, combinados com a camisa aos quadrados azuis, amarelos e brancos.

Ainda há pouco ao jantar se levantou da mesa para ir buscar mais sal; A sopa está insonsa, Mãe. O meu filho sempre gostou da comida apetitosa.

Já foste o meu príncipe encantado, não tive nunca coragem de to dizer, foi como um sonho de menina guardado zelosamente num tempo de faz de conta. Um dia deixaste de ser o meu príncipe mas ficaste para sempre no meu coração como o menino traquina que gostava de me provocar e desenhar nuvens no olhar. Por vezes havia tempestade mas tu soubeste como desafiar-me numa onda guerreira, tornando-me mais forte e combativa, mais bem preparada para as batalhas que viriam a seguir.

Dá-me mais sopa, Mãe. Mesmo sem sal dá-me mais sopa.

A loiça, continuei a lavá-la todos os dias; depois do almoço e depois do jantar. Só de ver os pratos todos empilhados - todos menos um - me dava uma enorme vontade de chorar. O esfregão, esse, assim como o detergente da loiça, não notaram nenhuma diferença de especial; menos um prato, menos um talher, menos um copo, menos uma tigela, menos... Só a saudade de ti estava a mais! Enchia-me o peito como um balão prestes a rebentar mas que nunca rebentou. Melhor dizendo, nunca explodiu. Mas foi vertendo veneno a doses mínimas chorando de saudade os meus quotidianos, disfarçando tudo num presente encapuçado de rotinas. E o calendário sempre indiferente à minha dor.

Se não fosse aquela curva transformada em recta sem destino, podia comer mais da tua sopa, Mãe. Mesmo sem sal!

Paula Sá Carvalho, Junho de 2015
Ao Zé Carlos, Príncipe de uma infância sem calendário