Dá-me mais sopa, Mãe
Estava eu a acabar de lavar a
loiça do jantar quando o meu filho me veio dar um beijo; Vou beber um copo com
amigos mas não venho tarde. Ainda lhe disse; Já estás com o pijama e tudo,
filho... Porque não ficas em casa?
Era o miúdo mais traquina da
praceta. Adorava fazer malandrices às miúdas e depois, para se fazer perdoar,
enviava-lhes aquele sorriso iluminado de
azul como se enviasse uma carta de amor. As birras passavam depressa tanto às
"ofendidas" como a ele. Até eu que pensava ser uma das suas vítimas
"preferidas", pelas investidas tão recorrentes em contrariar-me (não
raramente acabando por me levar aos gritos e às lagrimas), lhe perdoava
rapidamente... Na idade de brincar, o tempo não é desperdiçado por questões intricadas
em egos ainda mal finalizados.
A cozinha ainda não estava toda
arrumada quando vieram dar-me a notícia, soube então que já não tinha filho. Não
acreditei no que me diziam; Já não tenho o meu filho? Isso é impossível! Ainda
sinto o calor dos seus lábios quando há pouco me deu um beijo! Ainda o oiço a
despedir-se, alegre e descontraído antes de fechar a porta da rua; Até logo, Mãe.
Vou ficar na obscuridade até me
cansar. Não me venham com falinhas mansas e dizer que tudo o tempo apazigua. Não
quero, pura e simplesmente não quero, pensar no tempo do devir. Para mim o
tempo está parado, adormecido precocemente na inércia das horas sem calendário,
sem estações do ano.
Não consigo parar isto! De onde é
que me apareceu esta recta, a estrada não tinha esta recta!
O que eu corri para me refugiar
nuns braços protectores. Chorei tanto, tanto, que só depois de me cansar a
verter lágrimas pude aliviar um pouco a pressão no meu peito. A recordação da transparência
dos seus olhos ficou gravada em mim até hoje. Durante largos meses via o meu
amigo passear-se nos telheiros do liceu, na sala de convívio, por vezes na sala
de aulas. Sempre vestido com os seus jeans
preferidos e já coçados de tanto uso, combinados com a camisa aos quadrados
azuis, amarelos e brancos.
Ainda há pouco ao jantar se
levantou da mesa para ir buscar mais sal; A sopa está insonsa, Mãe. O meu filho
sempre gostou da comida apetitosa.
Já foste o meu príncipe
encantado, não tive nunca coragem de to dizer, foi como um sonho de menina
guardado zelosamente num tempo de faz de conta. Um dia deixaste de ser o meu
príncipe mas ficaste para sempre no meu coração como o menino traquina que
gostava de me provocar e desenhar nuvens no olhar. Por vezes havia tempestade
mas tu soubeste como desafiar-me numa onda guerreira, tornando-me mais forte e
combativa, mais bem preparada para as batalhas que viriam a seguir.
Dá-me mais sopa, Mãe. Mesmo sem
sal dá-me mais sopa.
A loiça, continuei a lavá-la
todos os dias; depois do almoço e depois do jantar. Só de ver os pratos todos
empilhados - todos menos um - me dava uma enorme vontade de chorar. O esfregão,
esse, assim como o detergente da loiça, não notaram nenhuma diferença de
especial; menos um prato, menos um talher, menos um copo, menos uma tigela,
menos... Só a saudade de ti estava a mais! Enchia-me o peito como um balão
prestes a rebentar mas que nunca rebentou. Melhor dizendo, nunca explodiu. Mas
foi vertendo veneno a doses mínimas chorando de saudade os meus quotidianos,
disfarçando tudo num presente encapuçado de rotinas. E o calendário sempre indiferente
à minha dor.
Se não fosse aquela curva
transformada em recta sem destino, podia comer mais da tua sopa, Mãe. Mesmo sem
sal!
Paula Sá
Carvalho, Junho de 2015
Ao Zé
Carlos, Príncipe de uma infância sem calendário