segunda-feira, 4 de março de 2024

 A propósito de direitos...

Recordo-me do primeiro dia de escola que não tive. A minha mãe não me tinha ainda dado a sacola, nem a ardósia, nem o aparo, nem a bênção... Mas eu nesse dia levantei-me muito cedo e corri ágil para a cozinha comer a malga. Os meus dois irmãos estavam já sentados à mesa a apagar os ruídos da fome e a minha mãe sentada ao lume a empilhar brasas.

- Senta-te e come, tens ali aquele monte de roupa dos teus irmãos para engomares. Já estás em boa idade para mereceres o que comes. E estás a olhar assim para quem? Despacha-te, vá!

- Sim, mãe, mas a escola é agora de manhã, depois faço tudo o que a mãe quiser... quando chegar... E olhei-a com a invasão suplicante e dócil do meu olhar.

- Escola, que escola? Para que quer uma ignorante e estúpida como tu ir à escola?

Saíram-lhe estas interrogações todas de chofre e a sua boca desfez-se num esgar de distância inultrapassável.

Nunca mais quis saber de letras nem de números, e desprezei toda a sabedoria que adivinhei exposta nesse lapso de vida que não tive. E quando mais tarde comecei a recitar versos foi só para libertar o meu peito daquela música persistente que me subjugava. Tantas e tantas vezes me interroguei, porque estas melodias a jorrarem-me do pensamento, esta beleza inoperante de palavras a bailarem no mais íntimo de mim?

Nunca aprendi a assinar o meu nome. Com as modernices da vida lá tive um dia que ir ao banco abrir uma conta. Pintei o dedo e borratei o papel que me apresentaram. A primeira vez que votei já era velha, mas o meu filho insistiu: É um direito e um dever que a mãe tem. É a liberdade de escolha de que finalmente usufruímos. Vamos reconstruir um país e a mãe faz parte desse país e tem de votar. Em quê? Uma cruz num quadradinho qualquer vale por meio século de Invernos sem Sol...

Nunca percebi nada de liberdade. E para mim ficou tudo na mesma. Continuei a levantar-me quando o Sol nascia e a recolher-me quando ele se escondia. Nem sequer sabia que a terra é redonda, foi a minha neta que me disse. Ou não me disse? 

In Deixem-me ouvir o silêncio,  Paula Sá Carvalho 


 

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