Não sei como quebrar este silêncio
Não sei como quebrar este silêncio
Humanos entre aspas
Atrevo-me a não olhar vendada
Para o que retratam os jornais
Nem tenho número de associada
No clube humano dos infernais
Assisto com imensa mágoa
As investidas para “os demais” suprimir
Usurpando-lhes dignidade abrigo e água
Numa cruel provação de devir
Para tantos são números a eliminar
Não têm corpo nem afetos nem alma
E sobram na ausência de quem pode castigar
Tanta fúria a perdurar no tempo
Será antecipação do “glorioso” momento
Em que os escombros habitarão vivalma
?!
Paula Sá Carvalho,
maio 2024
A propósito de direitos...
Recordo-me do primeiro dia de escola que não tive. A minha mãe não me tinha ainda dado a sacola, nem a ardósia, nem o aparo, nem a bênção... Mas eu nesse dia levantei-me muito cedo e corri ágil para a cozinha comer a malga. Os meus dois irmãos estavam já sentados à mesa a apagar os ruídos da fome e a minha mãe sentada ao lume a empilhar brasas.
- Senta-te e come, tens ali aquele monte de roupa dos teus irmãos para engomares. Já estás em boa idade para mereceres o que comes. E estás a olhar assim para quem? Despacha-te, vá!
- Sim, mãe, mas a escola é agora de manhã, depois faço tudo o que a mãe quiser... quando chegar... E olhei-a com a invasão suplicante e dócil do meu olhar.
- Escola, que escola? Para que quer uma ignorante e estúpida como tu ir à escola?
Saíram-lhe estas interrogações todas de chofre e a sua boca desfez-se num esgar de distância inultrapassável.
Nunca mais quis saber de letras nem de números, e desprezei toda a sabedoria que adivinhei exposta nesse lapso de vida que não tive. E quando mais tarde comecei a recitar versos foi só para libertar o meu peito daquela música persistente que me subjugava. Tantas e tantas vezes me interroguei, porque estas melodias a jorrarem-me do pensamento, esta beleza inoperante de palavras a bailarem no mais íntimo de mim?
Nunca aprendi a assinar o meu nome. Com as modernices da vida lá tive um dia que ir ao banco abrir uma conta. Pintei o dedo e borratei o papel que me apresentaram. A primeira vez que votei já era velha, mas o meu filho insistiu: É um direito e um dever que a mãe tem. É a liberdade de escolha de que finalmente usufruímos. Vamos reconstruir um país e a mãe faz parte desse país e tem de votar. Em quê? Uma cruz num quadradinho qualquer vale por meio século de Invernos sem Sol...
Nunca percebi nada de liberdade. E para mim ficou tudo na mesma. Continuei a levantar-me quando o Sol nascia e a recolher-me quando ele se escondia. Nem sequer sabia que a terra é redonda, foi a minha neta que me disse. Ou não me disse?
In Deixem-me ouvir o silêncio, Paula Sá Carvalho
A propósito de saudade ..
O comboio não apitou, mas trouxe Natal
As árvores estão nuas
Mas vestiram-nas de luzes
Algures neste planeta
As únicas luzes são as apagadas
O comboio já apitou inúmeras vezes!
No silêncio
Os prosadores criam palavras
Os músicos e os cantores harmonizam cantatas
Os pintores desenham iris em arcos
Mas só os sonhadores ouviram o comboio
E viajam no tempo
Os sonhadores sabem os limites
Das linhas cronológicas
E nunca se sentem perdidos
No caos…
Paula Sá Carvalho, Dezembro de 2023
Abertura da caça às bruxas
Foi decretada histericamente
A abertura da caça às bruxas
Andará a humanidade demente
Ou tem só falta de chuchas
?
Muitos viram-se para um lado
Imensos para outro se viram
Mas ninguém vê o triste fado
Que com inércia construíram
O que sobrevive desta humanidade
Que tem a moca sempre à mão
Onde assenta a mentira/verdade
Se a luz se reduz à sombra no chão
?
Paula Sá Carvalho, outubro de 2023