A propósito de direitos...
Recordo-me do primeiro
dia de escola que não tive. A minha mãe não me tinha ainda dado a sacola, nem a
ardósia, nem o aparo, nem a bênção... Mas eu nesse dia levantei-me muito cedo e
corri ágil para a cozinha comer a malga. Os meus dois irmãos estavam já
sentados à mesa a apagar os ruídos da fome e a minha mãe sentada ao lume a
empilhar brasas.
- Senta-te e come, tens
ali aquele monte de roupa dos teus irmãos para engomares. Já estás em boa idade
para mereceres o que comes. E estás a olhar assim para quem? Despacha-te, vá!
- Sim, mãe, mas a escola
é agora de manhã, depois faço tudo o que a mãe quiser... quando chegar... E
olhei-a com a invasão suplicante e dócil do meu olhar.
- Escola, que escola?
Para que quer uma ignorante e estúpida como tu ir à escola?
Saíram-lhe estas
interrogações todas de chofre e a sua boca desfez-se num esgar de distância
inultrapassável.
Nunca mais quis saber de
letras nem de números, e desprezei toda a sabedoria que adivinhei exposta nesse
lapso de vida que não tive. E quando mais tarde comecei a recitar versos foi só
para libertar o meu peito daquela música persistente que me subjugava. Tantas e
tantas vezes me interroguei, porque estas melodias a jorrarem-me do pensamento,
esta beleza inoperante de palavras a bailarem no mais íntimo de mim?
Nunca aprendi a assinar
o meu nome. Com as modernices da vida lá tive um dia que ir ao banco abrir uma
conta. Pintei o dedo e borratei o papel que me apresentaram. A primeira vez que
votei já era velha, mas o meu filho insistiu: É um direito e um dever que a mãe
tem. É a liberdade de escolha de que finalmente usufruímos. Vamos reconstruir
um país e a mãe faz parte desse país e tem de votar. Em quê? Uma cruz num
quadradinho qualquer vale por meio século de Invernos sem Sol...
Nunca percebi nada de
liberdade. E para mim ficou tudo na mesma. Continuei a levantar-me quando o Sol
nascia e a recolher-me quando ele se escondia. Nem sequer sabia que a terra é
redonda, foi a minha neta que me disse. Ou não me disse?
In Deixem-me ouvir o silêncio, Paula Sá Carvalho