terça-feira, 15 de outubro de 2024

 






Não sei como quebrar este silêncio

Feito de raivas
Terror
Tantas lágrimas

Alguém disse
Aniquila o teu inimigo
Ou dá-lhe dignidade

Neste começo de Outono
Folheio páginas de horrores
Visualizo escombros
Onde já houve gente dentro
Antes das paredes  despedaçadas

Não sei como quebrar este silêncio

Paula Sá Carvalho, Outubro 2024

segunda-feira, 27 de maio de 2024

 

Humanos entre aspas

 

Atrevo-me a não olhar vendada

Para o que retratam os jornais

Nem tenho número de associada

No clube humano dos infernais

 

Assisto com imensa mágoa

As investidas para “os demais” suprimir

Usurpando-lhes dignidade abrigo e água

Numa cruel provação de devir

 

Para tantos são números a eliminar

Não têm corpo nem afetos nem alma

E sobram na ausência de quem pode castigar

 

Tanta fúria a perdurar no tempo

Será antecipação do “glorioso” momento

Em que os escombros habitarão vivalma

?!

 

Paula Sá Carvalho, maio 2024

 

quarta-feira, 24 de abril de 2024













LIBERDADE


Inspira-nos

A quebrar silêncios

Obscurecidos pela apatia

Das gentes sem sangue

Sem arte

Sem fulgor no olhar

 

Inspira-nos

A quebrar o poder

Dos que sempre endurecem

Os quotidianos

Dos que desejam

Dos que sonham

Dos que nunca esquecem

O perfume da liberdade

!


Paula Sá Carvalho, Abril 2024

 


segunda-feira, 4 de março de 2024

 A propósito de direitos...

Recordo-me do primeiro dia de escola que não tive. A minha mãe não me tinha ainda dado a sacola, nem a ardósia, nem o aparo, nem a bênção... Mas eu nesse dia levantei-me muito cedo e corri ágil para a cozinha comer a malga. Os meus dois irmãos estavam já sentados à mesa a apagar os ruídos da fome e a minha mãe sentada ao lume a empilhar brasas.

- Senta-te e come, tens ali aquele monte de roupa dos teus irmãos para engomares. Já estás em boa idade para mereceres o que comes. E estás a olhar assim para quem? Despacha-te, vá!

- Sim, mãe, mas a escola é agora de manhã, depois faço tudo o que a mãe quiser... quando chegar... E olhei-a com a invasão suplicante e dócil do meu olhar.

- Escola, que escola? Para que quer uma ignorante e estúpida como tu ir à escola?

Saíram-lhe estas interrogações todas de chofre e a sua boca desfez-se num esgar de distância inultrapassável.

Nunca mais quis saber de letras nem de números, e desprezei toda a sabedoria que adivinhei exposta nesse lapso de vida que não tive. E quando mais tarde comecei a recitar versos foi só para libertar o meu peito daquela música persistente que me subjugava. Tantas e tantas vezes me interroguei, porque estas melodias a jorrarem-me do pensamento, esta beleza inoperante de palavras a bailarem no mais íntimo de mim?

Nunca aprendi a assinar o meu nome. Com as modernices da vida lá tive um dia que ir ao banco abrir uma conta. Pintei o dedo e borratei o papel que me apresentaram. A primeira vez que votei já era velha, mas o meu filho insistiu: É um direito e um dever que a mãe tem. É a liberdade de escolha de que finalmente usufruímos. Vamos reconstruir um país e a mãe faz parte desse país e tem de votar. Em quê? Uma cruz num quadradinho qualquer vale por meio século de Invernos sem Sol...

Nunca percebi nada de liberdade. E para mim ficou tudo na mesma. Continuei a levantar-me quando o Sol nascia e a recolher-me quando ele se escondia. Nem sequer sabia que a terra é redonda, foi a minha neta que me disse. Ou não me disse? 

In Deixem-me ouvir o silêncio,  Paula Sá Carvalho 


 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

 A propósito de saudade ..

Não vás por aí minha querida, não traces uma linha reta na tua existência. Nada é linear e o futuro constrói-se todos os dias mesmo que não seja visível. Caminha olhando o céu e as flores que bordam os caminhos por onde passas, levanta a cabeça e observa as estrelas que lá no alto brilham há muitos milhões de anos e que cadentes marcam o tempo. Será que aquela ali ainda lá está ou é só o seu brilho que ficou a emoldurar o teu céu? O poder, o contrapoder, a liberdade, a prisão dos passos e do pensamento, só tu no teu interior podes desbravar e compreender, e não percas nunca a ilusão de fazeres todos os dias o teu próprio itinerário. Aprendi muito neste lugar onde vivo, este lugar que é o nada e o fim de todas as galáxias, onde os Deuses são o pó dos tempos e onde os humanos são o pó deles próprios. O nada é nada, mas nesta imensa negação de tudo podes encontrar a explicação do perecível; se nada souberes construir dentro de ti própria nada será visível no julgamento do tempo. Se hoje me recordas, e deixas que a saudade inunde o teu coração, foi porque ambas construímos algo em comum; eu dei-te o calor da minha mão para atravessares os caminhos do medo e tu deste-me o do entendimento para eu atravessar a ponte que liga os dois rios da existência: o lado da bruma e o lado onde se reflete a luz. Enquanto tu existires eu mesma já não existindo vou existir contigo, e um dia tu deixarás essa mesma herança a quem procurar na tua mão o conforto dos momentos partilhados, e assim será pelos tempos numa infinidade de trocas.
in Deixem-me ouvir o silêncio, Paula Sá Carvalho