quinta-feira, 10 de dezembro de 2015


A janela

 

Só vejo a noite ainda arrefecida

E as luzes insistentes

Da cidade

Na calçada adivinho passos

E um burburinho crescente

A quebrar-me do silêncio

Portas a abrir e a fechar

O cheiro do café a beber-se

Apressado


Da minha janela

Adivinho o mundo

De gente que não conheço

 

Que tamanho tem a sua sombra

Que sinceridade encanta o seu sorriso

Que mágoas temem o seu olhar

 

Quantas mãos escondidas

No bolso das suas vidas

?

 

Paula Sá Carvalho, Dezembro de 2015

sexta-feira, 13 de novembro de 2015


A leveza da infância…


O elogio


Passeava-me para cá e para lá em cima do muro e com as mãos segurava os folhos do vestido para que estes fossem evidentes. A minha atenção estava toda concentrada nos passos rápidos que dava e na leveza dos folhos do meu vestido mas o meu coração ouvia atentamente a conversa entre a minha irmã e o nosso vizinho.


Eu sabia que falavam de mim mas procedia como se não o fizessem. Saía reforçada a minha aparente distância para tudo o que não fosse os folhos do meu vestido.


Nas minhas idas e vindas, pareceu-me escutar; A tua irmã tem um vestido muito bonito. Seguiu-se uma resposta de circunstância; Foi a mãe que fez. Também tenho um igual.


Mais uma ida e vinda e o meu coração bateu forte, cada vez mais forte, quando percebi como um sussurro a voz do meu vizinho; Não gosto dos espanhóis mas o vestido da tua irmã é muito bonito...


Paula Sá Carvalho, Novembro 2015

sexta-feira, 2 de outubro de 2015


Este poema já tem uns "anitos" mas reflecte o mesmo que reflectia quando o escrevi. Nos próximos dias vou fazer novamente 25 anos e decidi por isso publicá-lo. Afinal todos temos a idade das nossas artroses existenciais e ele há dias assim, com um pé no chão e outro a balançar, algures por aí, num céu cheio de castelos no ar...

 

O ESPELHO

 

Aos meus vinte e cinco anos de idade

Desejo relembrar alguns traços de identidade

Cuja beleza de carácter de alma e de figura

Não desdenho comparar à formosura

 

Que neste mundo, mudo surdo e pobre

É tão difícil ser-se radioso e nobre

Quanto a rosa à vida tem direito

Num jardim de colheita a preceito

 

Procurei com meus olhos verde-mar

Toda a luz da vida harmonizar

Meus lábios aprenderam a sorrir

Minha alma a chegar e a partir

 

E de todas as paixões que eu vivi

Nenhuma mais forte me consome

Que este Amor que sempre senti

Pela palavra e pelo gesto que a envolve

 

Por mim tenho grande apreço

Qual é a esperança qual é ela

Que me sobra se me esqueço

Que sou eu e só eu que pensa nela

 

E se por vezes algum amado feri

Com minhas atitudes de pretensa frieza

Creia-me ele que foi muito o que sofri

Pois Amar é uma guerra muito intensa

 

Hoje estou só como sempre estive

Apenas me dói mais o coração

Por tudo o que tive e não tive

Por aquilo que aprendi e outros não


Se meu retrato incompleto é efémero

E não define meus ânimos e meus anseios

Hei-de procurar na redefinição do eterno

A ambiguidade dos meus próprios seios

 

Por que nasci mulher e fêmea receosa

De séculos e séculos de dúbia história

Eu me consideraria auto-poderosa

Não fosse esta vontade quase inglória


Que me prende à luta quotidiana

De minha sensibilidade fazer sobreviver

Seja qual o preço que daí emana

Seja qual o trono que possa perder

 

Paula Sá Carvalho, Outubro de 2015

quarta-feira, 20 de maio de 2015


O eclipse

 
Tudo em meu redor
Se levantou num crepúsculo ruidoso
De aves inquietas
Tocaram as badaladas
E não as contei
Mais uma
Menos uma
São pormenores logísticos
Que não alteram a penumbra
Das dúvidas
Nem das certezas
Por que trilhos caminhamos
Por que rotas voamos
Se toda a viagem dentro de nós
É um círculo infindo
De espaço por desbravar
?

Paula Sá Carvalho, Maio de 2015

segunda-feira, 20 de abril de 2015


700
Ou aproximadamente

Parti descalço
Cheguei nu
Os outros
Os que como eu vieram descalços
Ou mal calçados
Vestiram-se de mar
Quase todos

Vieram as câmaras de televisão
Com vidros cintilantes
E olhares perscrutadores
Mediram a imensidão do mar
E filmaram os meus pés descalços

Sequei as lágrimas
Que não chorei
E mantive a postura
Para a fotografia

Não se interessaram pelo meu rosto
Só filmaram os meus pés
 
Vieram cobertores
E sapatos
Comida e água
E alguns olhares comovidos
Também

Uma mão tocou o meu ombro
Um olhar tocou-me a alma
E então chorei

700 Lágrimas
Aproximadamente



Paula Sá Carvalho, 19/04/2015

 

quarta-feira, 1 de abril de 2015


Limpezas de Primavera...
 
Lavandaria

Aqui lava-se de tudo
Limpa-se bastante também
A sujidade do Mundo
E aquela que vai além

Não há nódoas maiores
Nem cheiros por eliminar
Pois limpamos os piores
Que entranhados possam estar

Fazemos limpeza geral
E somos muito eficientes
Daqui o belo nunca sai mal
Nem o frágil em pentes

Só as almas não limpamos
Pois não há sujidade nas puras
E as outras nem se esfregamos
São de matérias mui duras...

Não há modo nem temperatura
Que elimine tal sujidade
Podemos só criar alvura
Em seres de mui qualidade
 
Se só para isso servem
Então estão muito incompletos
Pois há tantos que fedem
E de merda estão repletos

Pensava caminhar no futuro
Já aqui não venho mais
Não basta limpar o que é puro
Isso é trabalho de ancestrais!

Paula Sá Carvalho/Março 2015

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015


Evasão
 
Percorri com os pés descalços
Sonhos de menina
Pisei pedras pisei flores
Virei esquinas virei avenidas
Parei frente a uma sapataria
E calcei uns sapatos verde pirilampo
Sentei-me no cimo das escadas
À espera da luzinha
Do bichinho
Quando caiu a noite
Voltou a ser dia
 
Depressa
Demasiado depressa
 
Paula Sá Carvalho, Fevereiro/2015

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015


O Amor

 
O Amor não é leveza
Pois pesa a cada instante
Que se sente na crueza
Da ausência do Amante

O Amor é uma saudade
Do que temos e não temos
Vivida na ansiedade
E no medo de o perdermos

O Amor é porto-abrigo
É bonomia é tempestade
Vai de mãos dadas contigo
Voar para a felicidade

E és maior e és também
O palpitar
No coração de alguém
 
 
 
Paula Sá Carvalho, Fevereiro/2015